Desmistificando o Direito Canônico (I)
O direito canônico é muito mais que apenas regulamentações, é uma vivência ativa de nossa tradição católica, afirma o escritor Pete Vere.
Vere é co-autor, com Michael Trueman, de «Surprised by Canon Law: 150 Questions Laypeople Ask About Canon Law» (Surpreendidos pelo Direito Canônico: 150 perguntas de leigos sobre o Direito Canônico), e de «Suprised by Canon Law, Volume 2: More Questions Catholics Ask About Canon Law» (Surpreendidos pelo Direito Canônico, Volume 2: Mais perguntas dos católicos sobre o Direito Canônico), publicados ambos em Servant Books.
Na primeira parte desta entrevista com ZENIT, Vere fala sobre o papel que o direito canônico desempenha tanto na vida do católico comum como em temas difíceis, como dar a comunhão a políticos pró-aborto e os escândalos de abuso sexual.
A segunda parte será publicada na sexta-feira, 3 de outubro.
– O que o levou a escrever «Surpreendidos pelo Direito Canônico»? Por suas pesquisas e pela reação dos leitores, como o direito canônico afeta a vida do católico?
– Vere: O direito canônico afeta todos os aspectos de nossa vida diária como católicos; por exemplo, quando podemos receber a Eucaristia, como recebemos a absolvição através do sacramento da confissão, quem pode ser padrinho. O direito canônico não é composto apenas por frias normas e regulamentações; é uma parte viva da tradição sagrada da Igreja.
Na última década, vimos como o direito canônico atua através de acontecimentos extraordinários na vida da Igreja. Alguns destes acontecimentos foram dolorosos, como a crise da má conduta sexual no clero e a necessidade de enfrentar políticos que minam a santidade da vida e o matrimônio. Outros acontecimentos foram causa de alegria e celebração na Igreja universal. Entre eles está a eleição do Papa Bento XVI, a reconciliação dos católicos tradicionalistas em Campos (Brasil) e as canonizações de Santa Faustina, do Padre Pio, Josemaría Escrivá e as crianças de Fátima.
Ao escrever como católicos, esperamos e suplicamos que a inspiração venha do Espírito Santo, ainda que escrevamos como seus instrumentos humanos imperfeitos. Em muitas ocasiões, Deus nos fala através da Igreja ou de outras pessoas. No caso de «Surpreendidos pelo Direito Canônico, Volume I», a inspiração veio através do Concílio Vaticano II, o movimento de apologética pós-conciliar, e, muito mais importante, o povo de Deus ao qual servimos através do ministério do tribunal.
O direito canônico não existe para si mesmo. Pelo contrário, existe como servidor da teologia, para auxiliar na salvação das almas, ajudando a proporcionar ordem dentro da vida cristã. Desta forma, a salvação das almas é a lei suprema da Igreja.
Uma das grandes bênçãos do Concílio Vaticano II é que abriu as ciências sagradas aos leigos, como parte do chamado universal à santidade. Em palavras simples, todos os católicos estão chamados a crescer em santidade e conhecimento da fé. Em conseqüência, o Concílio Vaticano II lança o desafio a todos os católicos, para que cheguem a conhecer mais sua fé.
Ainda que a era pós-conciliar viu como a Igreja tornava mais acessíveis aos leigos a Sagrada Escritura e diversas disciplinas teológicas, nós havíamos ficado um pouco por trás na hora de fazer o mesmo com o direito canônico. De fato, enquanto escrevíamos o primeiro volume de «Surpreendidos pelo Direito Canônico», Michael e eu estávamos preocupados por que este intento de tornar o direito canônico acessível aos leigos pudesse levantar desconfianças entre nossos colegas do mundo canônico – especialmente porque tanto Michael como eu ainda somos jovens nesta profissão e nossa apresentação tem muitos elementos emprestados do movimento de nova apologética e evangelização.
Nossa preocupação não poderia ter estado mais infundada. Ainda estou surpreso pelas orações e pelo apoio que recebemos de nossos companheiros canonistas, que representam todas as áreas do ministério canônico.
E com suas orações e apoio, começamos a escrever «Surpreendidos pelo Direito Canônico, Volume II», que responde a questões sobre temas que suscitaram o interesse dos leigos desde a publicação do primeiro volume.
Os assuntos incluídos são: a canonização dos santos, a eleição papal, a crise da má conduta sexual, as Igrejas católicas orientais, as possíveis ações para remediar o dissentimento dos políticos católicos com relação ao ensinamento moral da Igreja, o ecumenismo, o surgimento de novas ordens religiosas e movimentos, e alguns outros temas.
– Falemos sobre alguns destes temas. Muitos católicos não sabem o que pensar de políticos católicos de relevância que apóiam o aborto ou o casamento do mesmo sexo, e continuam recebendo a comunhão. O que o Direito Canônico tem a dizer sobre isso?
– Vere: O cânon 915 é claro. Não devem ser admitidos à comunhão aqueles «que obstinadamente persistam em um manifesto pecado grave».
A questão se converte, então, em se o cânon 915 deve ser aplicado aos políticos pró-aborto que se declaram católicos. O crescente consenso entre pastores e canonistas é de que sim. Este é especialmente o caso desde 2004, quando o arcebispo de San Luis, Dom Rymond Burke, manifestou-se com firmeza a favor desta medida pastoral, e recebeu o apoio da Congregação para a Doutrina da Fé.
Não obstante, Dom Burke dedicou muito tempo a pensar nisso e à oração antes de torná-lo público. Assim é como deveria ser, o digo como alguém que publicamente defendeu a publicação do cânon 915 antes que Dom Burke utilizasse neste tema sua liderança, tanto de bispo como de canonista.
Participar da comunhão é a nossa atuação mais sagrada como católicos. Negar este sacramento a um católico é muito grave, e só deveria ser feito quando se esgotassem todas as demais opções pastorais. Negar a comunhão a alguém é enviar uma dura mensagem, mas dado que o aborto é a destruição insensível de vida inocente no ventre materno, tal mensagem é verdadeiramente necessária. O mesmo se pode aplicar à definição natural e sacramental do matrimônio, que é o elemento construtivo básico da sociedade e da ordem natural.
Impor o cânon 915 se torna necessário quando um político católico está em desacordo com o ensinamento da Igreja e rejeita a correção pastoral. E sim, desde Dom Burke a Dom Joseph Naumann, bispo de Kansas City, sei que nenhum pastor negou a comunhão sem antes corrigir o político e dar-lhe a oportunidade de emendar seu caminho.
– Outro doloroso tema para os católicos nos últimos cinco anos foi a má conduta sexual. O que pode nos dizer sobre como a Igreja tratou estes casos à luz do direito canônico?
– Vere: O abuso de um jovem é uma tragédia, especialmente quando este abuso é cometido por alguém que foi colocado ao seu lado para cuidar de um fiel para Cristo. As ações do passado, ou a falta das mesmas, para tratar estas situações, não utilizaram as medidas legais do direito canônico. Não foi uma falha das leis da Igreja, que, promulgadas pelo Papa João Paulo II em 1983, continham um cânon que castiga os clérigos que abusam sexualmente de menores; foi uma falha dos responsáveis que não utilizaram estas leis.
Em minha opinião, o direito canônico foi visto de maneira errônea, como algo extremamente complexo, o que levou com facilidade a transtornar-se por uma apelação do sacerdote, e a que se pedissem penas mais duras, em vez de proporcionar uma medida pastoral e caritativa. «Como podemos pregar o perdão se afastamos o Pe. Fulano do ministério por um erro?» foi a objeção comum. O conselho da comunidade psicológica também cometeu um erro quanto à recuperação do paciente e a assessoria leiga legal normalmente buscou acordos fora dos tribunais e, em parte, de forma confidencial.
Não obstante, já está acontecendo a mudança depois de que se ficou sabendo dos casos de Boston. Em 2001, a Santa Sé se reservou o direito de considerar tais casos de abuso sexual de clero. No motu proprio chamado «Sacramentum Sanctitatis Tutela», aparecia uma seção indicando que nos casos nos quais um clérigo comete uma agressão sexual contra um menor, o assunto devia ser levado à Congregação para a Doutrina da Fé, após uma investigação preliminar levada a cabo pelo bispo local. Antes disto, os casos podiam ser tratados no âmbito local.
«Sacramentorum Sanctitatis Tutela», em parte, inspirou depois as deliberações dos bispos dos Estados Unidos de 2002, em seu encontro de Dallas, sobre a criação da Carta e Normas para a Proteção das Crianças e dos Jovens. Estas normas nacionais foram depois aprovadas pela Santa Sé e continuam em vigor hoje.
A carta e as normas mudaram dramaticamente de forma de tratar os casos de abusos sexuais do clero. Junto às mudanças na competência, procedimento e mudanças de ministério, as dioceses cumprem plenamente os programas de discernimento e preparação. O Comitê Nacional de Revisão da Conferência Episcopal continua com seu trabalho de supervisionar os programas, fazendo recomendações quanto a melhoras práticas e cumprimentos.
No final do dia, a principal mudança se vê com perspectiva – que o clero e os leigos estão agora buscando de forma ativa a maneira de proteger as crianças e os jovens de quem quiser lhes causar dano. Os responsáveis e a equipe da Igreja adotaram o instinto protetor que um pai tem por seu filho.
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Zenit